domingo, 19 de junho de 2011

Ensaio sobre os pés dela

Entro na cama na escuridão que envolve o quarto, ela já dorme e não quero que acorde. Os olhos habituam-se gradualmente à falta de luz e as formas vão-se tornando distintas. Primeiro o vulto dela encolhido do outro lado da cama e depois as feições vão aparecendo no seu rosto tranquilo e feliz na almofada. Sonha com um riacho que corre frio por entre blocos de pedra, em tempos libertos de uma outra rocha, e saltita descalça por eles, descendo o rio até o encontrar numa cova funda onde amansa e as águas descansam. Chapina com o pé na superfície quase parada, criando gotas como pequenas rãs que saltam em todas as direcções. Completamente nua de roupas e pensamentos, entra na água lentamente, dando a conhecer ao corpo o contacto diluído do frio, e desaparece à tona, mergulhando até ao fundo colorido de seixos.
Tenho os pés frios! Murmura quase indistintamente sem abrir os olhos, desperta pelo desconforto que lhe habita nos pés, desde os dedos pequenos, perfeitamente alinhados, até aos calcanhares macios e magros em sapatinhos de cristal. Aconchega-se no calor da minha presença. Suspira de pés entrelaçados nas minhas pernas como uma trepadeira que procura a luz e adormecemos.
Enquanto o sono se aprofunda num abismo, o sol entra na noite apenas naquele espaço, naquele quarto. O rio transborda paredes e corre pelo soalho e onde havia um tapete, há agora águas cristalinas. Os móveis retornam à madeira e a madeira em floresta brota das gavetas. Por fim a cama eleva-se e transmuta-se em rocha quente exposta à tarde de raios solares. Abre os olhos, verdes como rebentos vivos de folhas, e passa os dedos ainda molhados pelo meu cabelo dizendo, agora também entras nos meus sonhos? Entrei sem fazer barulho e segui as pegadas molhadas que os teus pés lindos deixaram na pedra.

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