quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

mosca I

Melech ha-Melachim, O Rei dos Reis, mais conhecido por Deus, foi acordado de madrugada pela oração da manhã, Schacharit. Procurou o telemóvel para se certificar das horas, confuso pela difusa claridade que lhe chegava das janelas.
-Maldito judeu que não tem palha na cama! Deve julgar que toda a gente tem a vida dele…
Aplacou o travesseiro por cima da nuca abafando a prece e adormeceu, regressando ao sonho transmutado em sátiro, rodeado por delicadas ninfas que lhe afagavam o órgão sexual de dimensões bem acima da média.
O judeu continuou, compenetrado, sentado na poltrona de pernas cruzadas. Rezar era a sua única esperança, mais ninguém o podia ajudar a não ser o próprio Criador. As orações prosseguiram ao longo do dia, Minchá como é conhecida a da tarde, e terminou exausto com a última, Arbit, a oração da noite, tão completa como a da manhã.
Vendo a veemência com que o judeu rezava, Deus ficou preocupado com a possibilidade de ser arrancado a um sonho na madrugada seguinte. Pousou o driver, uma madeira que serve em geral para bater a bola do tee em buracos compridos, e resolveu prestar atenção às suas preces. A primeira reacção foi de ira, sentiu-se ridicularizado e insultado e repreendeu o judeu.
- Yah!… Rogo-te para que me ouças com atenção! Pediu o judeu temendo o Poderoso.
-Eu ouço tudo judeu, e o que ouvi é que queres que te transforme numa mosca durante o shabat.
-Mosca macho de preferência!
-Só podes estar louco ou enfeitiçado pelo rum, ou então estás a fazer pouco de mim…!
-nada disso Yah! O que me faz pedir que me transformes em mosca é um motivo tão válido como outro qualquer, mas terás de confiar na minha palavra, pois os meus intentos só depois serão revelados.
- Tu brincas comigo judeu, sabes que a minha curiosidade suplantará a racionalidade do teu pedido. Pois seja, concedo que sejas uma forma simples de mosca durante o próximo sábado, quero ver até que ponto pode ir a tua astúcia!

E assim foi, mal o sol se pôs na sexta-feira, dando início ao shabat, o judeu que estava quase nu deitado no sofá, transformou-se numa Calliphora vomitória, que é o mesmo que dizer, uma varejeira. Instintivamente bateu as asas e embateu na primeira janela que tinha pela frente. Meio zonzo, o judeu esticou as seis patas, uma de cada vez antes de agitar as delicadas asas. Voar não era assim tão fácil como parecia, mas tinha grande parte da noite para exercitar, só tinha de estar em Lisboa por volta da hora do almoço.
Antes de sair de casa mirou-se ao espelho, e gostou dos pêlos bem negros penteados para trás, que lhe cobriam parte da cabeça e do segundo segmento do corpo. Os reflexos azuis metálicos do abdómen bem definido, deixavam-no confiante para encarar o encontro, e depois de esfregar as patas pelas asas e pelos delicados olhos facetados laranja, levantou voo rumo ao primeiro obstáculo: A porta! Ao fim de uns minutos o judeu entendeu que tinha de começar a pensar como uma mosca, e que as moscas entram pelas janelas, e foi então que se lembrou das janelas da cozinha, sempre ligeiramente entreabertas.

Uma nortada tomou-o de ponta, mesmo o bater energético das suas poderosas asas, nada podiam contra aquela força e deixou-se transportar, percorrendo Matosinhos em poucos minutos, até esbarrar contra uma composição do metro a caminho da trindade. Procurou abrigo numa das reentrâncias, e deixou-se ir à boleia até Campanhã. Afinal ser mosca até tinha as suas vantagens, o judeu já só pensava que se fosse mosca toda a vida, nunca mais teria de pagar bilhete e podia viajar para qualquer lado. A desvantagem, é que uma mosca não vive mais de trinta dias. Confortavelmente instalou-se no alfa sob a alça de uma mala preta, e dormitou até à estação do Oriente, sonhando com coloridos sacos de lixo, fezes de cão e peixe podre de olhos opacos.

Agora só precisava de as encontrar no parque das nações, o que não seria de todo complicado porque tanta mulher junta, sempre faziam grande algazarra! Lá estavam elas adiante, mais uma vez aproveitou um reflexo de uma montra e certificou-se que estava apresentável para mosca. Esvoaçou o mais silencioso que conseguiu, poisando sobre os óculos de sol que seguravam as madeixas da mais faladora do grupo.
O propósito de toda aquela aventura era desvendar o maior de todos os segredos da humanidade: de que tanto falam as mulheres quando se juntam! Que inconfessáveis segredos partilham, será que falam dos homens, de roupa, de comida, trocam receitas, conselhos, anedotas? Esta dúvida atormentava o judeu desde tempos imemoriais, ele que venerava as mulheres, que as via como deusas em pedestais, que tudo queria saber sobre elas, não sabia o que falavam quando se juntavam à volta de uma mesa, para partilhar uma refeição de batatas recheadas.
Mas um odor elevou-se nos ares, captando por completo a atenção do judeu. Uma nuvem de feromonas atraia-o, já sentia o que pensava ser os seus genitais de mosca tremerem de excitação. Uma varejeira fêmea de dorso esverdeado, com reflexos estonteantes passava por ele a grande velocidade. Monto-a como se monta uma lambreta!

Já escrevia Saramago “…é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fossem falarem as mulheres umas com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta.”

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

devaneio...

Diz-me, quando te deitas, antes que o sono te embale e tome conta dos teus sentidos, voltas o teu ventre no lençol, e os teus dedos descem ligeiros pelo meio das pernas e procuram o prazer? Imaginas então que esses dedos não são os teus, mas sim os meus e que te deixam tocada pela humidade, para que a minha língua vá ao teu encontro, percorrendo os seios, mal parando sobre eles, sôfrega pelo teu sabor mais intenso a sul, como um mar que desagua nas coxas. E prendes-me, agarras-me pelo cabelo, puxando-me ao teu encontro até quase te vires. É assim que me vês enquanto te acaricias? aninhado nas tuas pernas, perdido no teu cheiro? Prolongas o prazer até ao ponto em que pedes a profundidade da minha virilidade, cuidas sentir as minhas investidas ofegantes, aceleras o ritmo, cerras os olhos e ouves a minha respiração sobre ti… e vens-te.

sábado, 14 de janeiro de 2012

a rapariga do quadro

Caminha descalça na ponta dos dedos, passos ensaiados de liberdade, atravessando-se à minha frente com a naturalidade fluída de um pássaro, ignorando-me uma e outra vez. Usa apenas um vestido solto quase transparente, de decote cheio onde os meus olhos se prendem, uma linha fina desenhada a pincel cruza o ombro segurando o peito.
Chamo por ela sem a chamar, não há um nome que a identifique, que se ligue ao seu rosto, e senta-se no meu colo como uma menina pequena, de pernas suspensas no ar. E os meus dedos acariciam-lhe o pescoço e a linha onde o rosto termina, uma pele incrivelmente branca e macia, os lábios com cieiro não produzem palavras. Deslizo as tiras de cada lado dos ombros, fazendo-as cair pelos braços, deixando a nu o seu peito duro como se fosse uma estátua de bronze quente ao toque na ponta dos meus dedos, exposta ao sol. Inclino a cabeça sobre ela e a minha boca prova-lhe o sabor da pele, não sabe a metal, nem a suor, não sabe bem nem mal, simplesmente não tem sabor, insípida e morna. Passeio a mão por ela até as pernas, depois subo o vestido, entrando os dedos nela, sentindo-a húmida, tensa, completamente abandonada em mim.
Não conseguia deixar de me questionar quem era aquela mulher, de rosto enigmático, conhecido mas sem nome, e aqueles lábios maltratados, secos, gretados num rosto tão jovem. Acordei encharcado em suor, ao meu lado ela dormia. Mas não era ela que estava sentada no meu colo, inclinada enquanto eu a acariciava, mordendo os lábios e cerrando os olhos enquanto pendia a cabeça para trás.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

famigerado sortudo...


Quando ela gritou naquela pronúncia doce da Maia: “quem está a seguir?! “Olhou para mim e eu não reagi de imediato. Ainda me encontrava amarrado ao mastro, hipnotizado pelo seu canto. Senti uma cotovelada da velhinha ao meu lado, agitada pelo frenesim típico de um domingo de manhã. Fiz o meu pedido, quatro solitários pães bem cozidos e avancei na fila, quando ela se voltou, mantendo a mesma energia que me deixara cativado desde o primeiro momento, o olhar voltou ao sítio onde eu já não estava, ocupado agora por um sexagenário de pêlos a saírem pelo nariz, deixando-a meia desorientada, acenei-lhe no início da fila: estou aqui! Querendo antes ter dito, aqui me tens, sou Romeu e todo teu! O rosto dela enrubesceu, e se eu já a achava uma deusa, o impulso foi prostra-me a seus pés, implorar um beijo daqueles lábios, beber um pouco daquele mel. 

“É só?” Disse estendendo o famigerado saco do pão. Deu-me o troco sem desfazer o sorriso, desejando um bom domingo. Seria se ela o passasse comigo. Os domingos são solitários, os piores dias da semana, toda a gente tem onde ir, ou levar os miúdos à piscina, receber a família em casa, ir à missa… não há copos, amantes, noitadas de jogo… 

Mas aquilo que eu via estampado no rosto dela era algo diferente, quase raro nos dias de hoje, tão raro que me deixava desarmado, rendido, insano, completamente embriagado. Aquilo era amor… pura paixão, daquela capaz de mover montanhas, derrubar governos, a cura para todos os males… lá porque raramente o sinto, não penses que não o distingo… Meu Deus, pensei, há um sortudo que é somente a razão de toda aquela luz… um homem merecedor daqueles lábios, que habita em constância o seu pensamento, e que a leva a manter um sorriso, um olhar de brilho intenso, perfume inebriante, ansiosa pela hora em que sai do serviço e o encontra à porta, pacientemente à espera, mãos suadas ansiosas, que se escondem nos bolsos.

A cada pedaço de pão penso nela… vai ser um domingo cinzento, espero que pelo menos chova.